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Sem computador e internet, jovens mais pobres têm menos oportunidades
Laysa Meireles: acesso a laboratório de informática na escola fez a diferença no desenvolvimento do aprendizado e resultou em mobilidade social para a filha da ex-doméstica dona Elmy
Cena 1: O despertador que toca às quinze para as quatro da manhã sinaliza o início de uma jornada cujos indicadores contrariavam qualquer prognóstico esperançoso para Laysa Meireles. Negra, pobre e criada num bairro periférico de Rio das Ostras, na Região dos Lagos do Rio de Janeiro, a jovem de 21 anos cursa o sétimo período da faculdade de Direito e o quinto no curso de Letras. Sua jornada diária inclui ainda as funções como supervisora na empresa de energia Enel.
Cena 2: quase todos os dias da juventude de Elmy Candida da Silva, hoje com 60 anos, foram vividos entre as tarefas de empregada doméstica. Encarando a vida dura de quem se levanta ainda de madrugada para disputar espaço no transporte público. Sem formação, ela cuida hoje de um pequeno bar, o que no Rio de Janeiro, é conhecido como birosca. Elmy é mãe de Laysa. A diferença entre a vida que a filha leva hoje e a trajetória de sua mãe é o que os cientistas sociais chamam de mobilidade social.
Como sempre ocorre com os fenômenos de mobilidade social, há algumas razões possíveis. Mas no caso de Laysa, não há dúvida de que o que a fez escapar das amarras da pobreza e se distanciar da herança de dificuldades pelas quais passou sua mãe foi o acesso a informação proporcionado pela disponibilidade de um computador, no concorrido laboratório de informática da escola pública que frequentou.
“O colégio recebeu computadores e acesso à rede para os alunos usufruírem entre 2005 e 2006. Eu não tinha acesso em casa e antes utilizava lanhouses. Num ambiente de pessoas ignorantes, a utilização da tecnologia foi primordial em todo o meu processo de crescimento, tanto pessoal quanto profissional e acadêmico”, avalia. No caso de Laysa, ela ressalta que o acesso à Internet foi um dos principais fatores de apoio ao ensino presencial, permitindo a realização de pesquisas para a feitura dos deveres e servindo de fonte de estudos para complementar o aprendizado e prepará-la antes das provas.
A falta de acesso a bens como microcomputador ou tablets, internet ou banda larga, é um obstáculo para muitos de nossos jovens. Traduzindo em números, 59% dos brasileiros filhos de pais sem instrução (que não completaram sequer o primeiro ano de estudos) não possuem microcomputador ou tablet. Para que se tenha uma medida de comparação, somente 5,7% dos jovens cujos pais têm ensino superior e não possuem bens de informática. Portanto, os pobres saem perdendo na corrida por informação e mesmo produtividade. Enquanto isso, filhos dos mais ricos têm maior acesso. No indicador “tipo de conexão à Internet no domicílio”, mais da metade (55%) dos filhos de pais sem instrução não tem acesso à internet em seu domicílio. Enquanto isso, praticamente nove em cada dez (89,4%) filhos de pais com superior completo ou mais têm banda larga em casa. Uma relação absolutamente desproporcional.
Tais Indicadores foram produzidos pelo Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (Imds), baseados em dados do IBGE, na série que destaca a correlação entre o nível de instrução dos pais e os resultados que seus filhos alcançam durante a vida. A fonte dos dados é a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2014. Detalhe importante: a pobreza aumentou no Brasil desde então. Em 2014, segundo dados do IBGE (Síntese de Indicadores Sociais, 2020), o percentual de brasileiros residentes em domicílios com renda per capita igual ou inferior a US$ 1,9 era de 4,5%, e subiu para 6,5% em 2019. Logo não será surpresa se o quadro de desigualdade de oportunidades tiver permanecido ou mesmo se acentuado.
Em uma realidade de carência tecnológica, políticas públicas de apoio e compensação podem ser fundamentais. A trajetória de Laysa Meireles é exemplar nesse sentido: pertencente a um grupo menos favorecido da sociedade, sem acesso, dentro de casa, a bens de consumo que poderiam facilitar a aquisição de conhecimento, ela encontrou no laboratório de informática de sua escola ferramentas de aprimoramento que não teria à disposição de outra forma.
PANDEMIA AGRAVA DIFICULDADES
A história da jovem do interior do Rio de Janeiro é apenas um toque de vida real a explicitar um problema que se agravou na pandemia de Covid-19. Com a inevitável determinação do fechamento das escolas e a suspensão das aulas presenciais, a experiência improvisada do ensino à distância fez o país retroceder no processo de inclusão. Pior: na realização do Enem 2020, adiado para os dias 17 e 24 de janeiro de 2021, muitos brasileiros sem acesso a computadores ou internet fora da escola ficaram para trás na disputa por uma vaga. Mesmo nos casos em que as escolas tentaram fazer funcionar um sistema de educação à distância, o resultado preocupa. De acordo com a educadora e consultora Andrea Ramal, membro do Conselho de Desenvolvimento da PUC-Rio, o conceito de aulas on-line não só precisa ser aprimorado como segrega oportunidades.
“O que tivemos foi um quebra-galho e deixou claro que o Brasil ainda precisa avançar em políticas públicas ligadas à tecnologia na educação para termos um ensino híbrido na educação básica”, diz a consultora. “A disparidade das condições do ensino entre alunos das redes pública e privada é enorme”, completa Andrea Ramal, que alerta para uma possível desigualdade nas condições de realização do Enem. “Há alunos que não contam com um bom serviço de internet ou computador, ou só têm um computador para a família toda, ou não têm um ambiente adequado em casa para estudar. Podemos dizer que o Enem nunca aconteceu em igualdade de condições, mas sua realização agora, como se nada tivesse acontecido, acirra ainda mais as injustiças”, completa a educadora.
Ainda segundo a pesquisadora, a volta das aulas nas escolas particulares, em muitos casos, será uma continuidade do trabalho realizado durante a fase de isolamento. Enquanto isso, nas escolas públicas houve sérias dificuldades para o acesso das crianças às aulas e atividades, e essas questões seguirão na volta do presencial a partir da estrutura precária da maioria das unidades. Em recente entrevista ao O Globo, o diretor presidente do IMDS, Paulo Tafner, detalhou as consequências deste problema: “Um dos principais caminhos para aumentar a mobilidade social é a educação. No caso do Brasil, na pandemia, ampliou-se esse fosso digital. Os meninos e meninas que estão em escolas particulares têm aula remota. E praticamente nenhuma escola pública teve aula presencial ou remota. A possibilidade de mobilidade social foi diminuída.” A reportagem pode ser lida neste endereço.
O acirramento do abismo entre os sistemas de ensino público e privado – que resulta em disparidade no aprendizado de crianças e jovens pertencentes a cada um – tornou os recursos da tecnologia, mais do que bem-vindos, cruciais. É preciso discutir o acesso a conectividade, a equipamentos e sua relação apropriada com políticas públicas que amplifiquem as oportunidades de mobilidade social – e cheguem, por exemplo, a mais pessoas como Laysa Meireles.