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Mobilidade social à luz das políticas públicas e da ciência

Uma conversa com Paulo Tafner, diretor-presidente do imds: "Vamos encontrar caminhos para que as pessoas tenham mais chances de melhorar de vida."
Publicado em 18/02/2021
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Economista, doutor em Ciência Política, Paulo Tafner conta que foi, desde cedo, picado por uma “mosca azul” diferente: não a do poder, mas a do papel transformador do estado. O desenvolvimento de ferramentas que tornem a sociedade mais justa e equilibrada norteia sua trajetória e o levou à criação do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social, que está nascendo agora. Na entrevista a seguir, Tafner fala da gestão pública e da importância crucial do investimento em mobilidade social.

Como definir o imds em poucas palavras?

Um instituto voltado para o elemento de ciência, da experimentação, que busca desenhar, testar, propor e disseminar políticas públicas que aumentem a mobilidade social no Brasil. Essa é a definição do imds. Em última instância também vamos fazer proposições de políticas públicas que tenham por objetivo aumentar a mobilidade social. Esse é o objetivo. Precisamos difundir a ideia de mobilidade, a sua importância, precisamos difundir indicadores e estatísticas que expressem mobilidade. Não vamos fazer nada por posições e entendimentos pré-estabelecidos. Será tudo baseado em evidências, estatísticas, números, cálculos. Não vou dar opinião. Eu posso ter opinião, e tenho, sobre várias coisas, mas isso não é relevante. O importante é o método científico.

A OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) calculou o número de gerações que um indivíduo nascido em uma família de baixa renda leva, em geral, para atingir a renda média da sociedade em que vive. Na Dinamarca esse intervalo é de duas gerações. No Brasil precisamos de nove gerações – o país fica em penúltimo lugar numa lista de 31 países. De que forma o imds contribuirá para modificar este cenário?

Ao dizer que o indivíduo demora nove gerações para sair dos estratos mais pobres e alcançar a renda média de sua sociedade, e se você definir um espaço de, digamos, 18 anos por geração, chegamos à seguinte realidade: estruturalmente, um indivíduo que vem de uma família de baixa renda, para alcançar o segmento médio da sociedade, demora 160 anos. Isso significa que a dependência da história do filho em relação à história do pai é muito forte. O indivíduo pode ganhar um prêmio na loteria e dar este salto, mas isso não é estrutural. O que é estrutural é ele ter acesso às habilidades, às competências que assegurem que ele chegue aos estratos médios da sociedade. É aí que nós entramos. Nosso foco será garantir maior mobilidade social para os estratos mais baixos da sociedade. A mobilidade é vista, por um monte de gente de direita, de esquerda, de centro, como resultado do esforço quase que meramente pessoal. Canso de ouvir “se você correr atrás dos seus sonhos vai conseguir”. Mas isso acontece com um em 1 milhão. Pelé é só um! Romário é só um! Não é isso que uma política pública tem que apregoar. O Estado deve criar as condições para que as pessoas tenham a chance de migrar de posição na sociedade, de caminhar para os estratos médios, sobretudo no caso do Brasil, em que há enormes bolsões de pobreza. Se essas políticas forem eficazes, é possível reduzir estruturalmente a pobreza, aumentar estruturalmente a igualdade de oportunidades. Nosso objetivo é chamar a atenção para essa necessidade, e apontar caminhos viáveis, com o melhor custo-benefício.

“A ideia é que uma pessoa não seja obrigada a ter baixa qualificação só porque seu pai tinha baixa qualificação. Se conseguirmos mudar isso, aí teremos tido sucesso.”

É possível dizer que há no Brasil uma estrutura viciada em dificultar a mobilidade social?

Diria o seguinte: precisamos conseguir difundir ideias que mudem um certo determinismo que persiste, apesar das boas intenções da política social brasileira. Temos que possibilitar que a história de vida de uma pessoa não seja limitada por falta de apoio. O indivíduo tem que poder superar a história de vida do próprio pai, alçando voos maiores do que os de gerações anteriores à sua. A ideia é que uma pessoa não seja obrigada a ter baixa qualificação só porque seu pai tinha baixa qualificação. Se conseguirmos mudar isso, aí teremos tido sucesso. Se a gente conseguir isso, alcançamos nosso objetivo final e poderemos até fechar o Instituto ou mudar de foco, pois esse tema não terá mais sentido.

No Brasil tem sido comum a crítica à desigualdade social. Pouco se fala de mobilidade social. Por que decidiram centrar sua ação nesse tema?

Há uma ideia de que, se você transfere renda, aumenta a igualdade de oportunidades. Isso é um equívoco. Não estou dizendo que não precisa transferir renda. Sim, precisa. Mas a sociedade tende a não respeitar as diferenças das pessoas e isso não pode ser desprezado. A desigualdade existe e existirá, inevitavelmente, pois as pessoas são diferentes e crescem e se formam em situações diferentes. Contra isso não conseguimos lutar e talvez nem seja desejável. O que queremos é que um filho de família pobre tenha a percepção clara de que vai ter os instrumentos, as ferramentas, para participar da corrida da vida, aí sim, em condição de igualdade. As nossas crianças todas, filhos de pobres ou de ricos, têm que entrar na mesma corrida, não importa de onde elas venham. Hoje temos corridas diferentes. Tem que ser a mesma corrida, na mesma pista, para todos, e aí já teremos um enorme avanço. Queremos combater a desigualdade sim, mas a desigualdade de chances. E nossa arma será a ciência a serviço dos governos e da sociedade, em todas as esferas.

O Brasil já tem bons programas sociais com foco em mobilidade?

Justamente isso é o que queremos saber e, se tiver, queremos avaliar e avalizar, para que sejam ampliados e copiados pelos governos. Mas de forma geral posso dizer que expandimos gastos sociais sem nos preocuparmos com a efetividade do gasto. Eu e vários pesquisadores da minha geração começamos a refletir sobre essa realidade e chegamos a questões óbvias. Por exemplo: o programa está bom ou não? Tem que ser avaliado! Não pode só fazer um programa e pronto, nessa ótica de sempre gastar mais. O gasto social nos governos pós-democracia cresceu muito e conseguimos melhorar mazelas da sociedade. O SUS tem problemas, mas melhorou o atendimento à população, pois antes não havia nada. Também universalizamos a acesso ao ensino fundamental, mas ainda estamos patinando no ensino médio. O fato é que estamos caminhando em diversas frentes, porém, a despeito disso tudo, não conseguimos mudar estruturalmente a trajetória de vida dos segmentos mais pobres.

Em quanto tempo será possível ter os primeiros resultados, as primeiras políticas públicas sugeridas ou avaliadas?

O caminho é longo. Os frutos demoram a aparecer. Vai demorar dez anos? Vai, no mínimo. Não estamos falando de um programa de transferência de renda, em que um técnico na Secretaria do Tesouro aperta um botão, o dinheiro vai para a rede bancária e chega a um cidadão no interior do Brasil. O que pretendemos é a oferta dos insumos, e um acompanhamento dessa oferta, para que aquela criança incluída no programa implementado participe a sério da corrida da vida.

“O fato é que estamos caminhando em diversas frentes, porém, a despeito disso tudo, não conseguimos mudar estruturalmente a trajetória de vida dos segmentos mais pobres.”

O Senhor e Armínio Fraga (conselheiro e fundador do imds) estiveram juntos na construção de uma proposta para a recente reforma da Previdência. E agora enfrentam o tema da mobilidade social. Há espaço para avançar com mudanças nas práticas da política pública brasileira?

Durante muitos anos eu me mobilizei pelo tema da Previdência porque, no período da redemocratização, aumentaram os direitos dos cidadãos, as transferências de renda, os serviços se universalizaram, mas o país não cresceu, ou cresceu muito pouco. Comecei a me dedicar à Previdência, o principal item de despesa da União. Escrevi livros sobre o tema. Lembro que em um deles, no início dos anos 2000, o Sergio Guimarães, hoje diretor de pesquisas do imds, assinou dois capítulos. Nossa parceria vem de longa data, assim como nossas trajetórias de gestores públicos. Enfim, o debate se ampliou. Um dia o Armínio Fraga, em uma de nossas conversas, se ofereceu para contribuir de alguma forma. Ele pagou as despesas básicas da equipe que montou o projeto da Reforma previdenciária e foi assim que saiu a proposta. O trabalho terminou ali. Outro dia ele me procura, mais uma vez angustiado com o país. Comentei que a questão da Previdência estava encaminhada, mal ou bem já estava sendo feita alguma coisa. Mas havia outro grande problema a ser enfrentado, que era a falta de oportunidades iguais para as crianças e os jovens. Resolvemos reunir novamente um grupo para tratar da questão. O interessante foi que ele não buscava mais um relatório, mas um projeto completo, para aproveitar uma eventual janela de oportunidade, como acabou acontecendo. O Armínio começou a dar ideias para viabilizar o Instituto e, nesse momento, eu liguei para o meu colega Sergio Guimarães, que estava no BNDES. Isso foi na virada de 2019 para 2020. Começamos a desenhar o projeto. Para discutir mais aprofundadamente, chamei Miguel Foguel, Paulo Levy, José Márcio Camargo, Ricardo Henriques e fomos moldando o Instituto. Estávamos bem avançados, entre fevereiro e março de 2020, quando veio a pandemia. Foi um milagre termos conseguido formalizar o Instituto. Eu saía pra pegar documentos, ia ao cartório… Foram uns três meses de burocracia, a cidade vazia, dava até medo. Começamos a definir projetos, como os do Prêmio Evidência e do Troféu imds, iniciativas para o reconhecimento de políticas públicas baseadas em evidências. Estamos fazendo termos de cooperação técnica, abrindo portas. Também estamos organizando uma base de indicadores. Essa foi a trajetória até aqui.

O Instituto nasce como uma plataforma voltada para pesquisadores, membros da academia e gestores públicos. Como unir essas três pontas?

Esse é o desafio da essência do imds. Sem o gestor público não faz sentido falar da política pública sob a ótica do Instituto. Temos que encontrar esses gestores. O prêmio Evidência e o Troféu imds de Mobilidade Social são iniciativas nesse sentido. Nós vamos fazer chamadas públicas a respeito de programas. Queremos ser uma plataforma de mobilidade e, dentro dessa plataforma, ter o histórico e a documentação de todos os programas sociais realizados no Brasil. Vamos divulgar isso para que os gestores encontrem programas realmente transformadores, devida e cuidadosamente adaptados aos detalhes específicos de cada caso. Vamos atrás das experiências onde elas estiverem, seja em Muriaé, no município de Jânio Quadros, na Bahia, em Tamboril, no Ceará, onde for. É um esforço enorme, precisamos alcançar jornalistas do Brasil inteiro, de fora do eixo Rio-São Paulo, em algum momento eles vão nos ajudar a chegar nos gestores do país, nos secretários.

Qual é a composição do Instituto?

É um grupo enxuto. Temos o diretor-presidente, a diretoria de pesquisas, uma área de informática e dados, uma área de comunicação que terá o papel de mobilização e uma área administrativa. Imagino que, a pleno vapor, teremos doze a catorze pessoas trabalhando, não mais do que isso. Apostamos em parcerias. Pode haver uma situação de mobilizarmos centenas de pessoas em trabalhos de parcerias com municípios, governos estaduais, gestores públicos. Podemos, por exemplo, definir um programa que envolva 200 escolas, com professores, pedagogos, alunos, pais de alunos, milhares de pessoas envolvidas. Mas o time do Instituto será sempre bastante enxuto. Para dar governança ao imds temos um conselho de administração formado em parte pelos sponsors, mas também por gente técnica. Também criamos um comitê técnico que vai dar aval às nossas proposições. Quando não tivermos esse aval vamos ter que voltar para a prancheta e redesenhar. E, adicionalmente, tem o conselho fiscal, que vai ver as contas.

Com que referências de trabalho o imds conta hoje?

Há projetos no Brasil que têm afinidades com o que a gente faz. O Ricardo Paes de Barros, em termos de ação, da implementação, do desenho e da avaliação de políticas públicas, faz um trabalho muito relevante, tem muito a ver com a gente. Na questão da desigualdade no Brasil, que conversa com mobilidade social, ele fez um trabalho bastante importante, mostrando a relevância da educação no aumento da renda permanente dos indivíduos. Ele fala de mobilidade, em última instância, mas com o foco em igualdade. Existem esforços importantes de construção de painéis longitudinais, em que se acompanha a mesma família por várias gerações. Talvez o mais emblemático seja o projeto liderado pelo César Victora na Universidade Federal de Pelotas. O Flavio Cunha, na Rice University, ajudou a criar um Instituto, o Texas Policy Lab, que faz pesquisas na área de primeira infância e adolescência, e que tem conversado com a gente sobre projetos que tenham impacto em mobilidade social. Há uma instituição no México, o Centro de Estudios Espinosa Yglesias, que faz periodicamente uma pesquisa nacional sobre mobilidade social, mas não tem essa preocupação com apoio à avaliação de programas que nós temos. Existem, por outro lado, pesquisadores que avaliaram programas públicos e seus impactos nas áreas de violência, de educação, eles conversam com a gente, mas são pesquisas isoladas. Há muita avaliação quase-experimental feita por pesquisadores brasileiros, alguns deles integrantes do nosso Comitê Técnico.

Há, portanto, um caminho por onde avançar?

Sim. Queremos apoiar avaliações de médio e longo prazo dos programas públicos, além de apoiar programas-piloto, e vamos aproveitar a ampla rede acadêmica já existente no Brasil. Por outro lado, há muitas análises sobre mobilidade social a partir da PNAD do IBGE. Devo ainda lembrar os trabalhos seminais de Nelson Silva e José Pastore, assim como pesquisadores mais jovens que seguiram nessa linha. É o caso de Valéria Pero, Fernando Veloso e do próprio Sergio Guimarães, cujos trabalhos motivaram uma produção mais recente. Queremos construir uma rede e apoiar a realização de mais estudos empíricos. Você pode encontrar no nosso site um conjunto de cerca de 400 indicadores de mobilidade social a partir da PNAD 2014, a última com dados que permitem esse tipo de análise. Em síntese, é mais uma questão de direcionamento. Há muitas iniciativas voltadas para a solução de problemas específicos, mas nem sempre sob a ótica estrutural da mobilidade social. Concebemos o imds como um lugar que consolide ideias com esse foco.

Seria exagero dizer que a proposta do imds é inovadora, pelo menos para a realidade brasileira?

É inalcançável para uma pessoa de classe média comum, que não vive ou estuda o tema, entender que o piso ser de cimento, em vez de terra batida, afeta o desempenho escolar da criança. São coisas que, só quando você estuda a fundo o cenário, vai perceber. E isso pode inspirar uma linha de atuação. Uma política focada em mobilidade social precisa identificar onde a solução passa por cimento ou onde é necessária a presença de uma recreadora para contar histórias. Em outros casos a necessidade é um posto de saúde, ou alternativas para jovens na iminência de serem capturados pelo tráfico. Tudo isso pode ser feito. E muda a vida de uma pessoa.

No mercado de trabalho, os níveis de educação e renda andam juntos. Projetos na área de ensino são, portanto, sempre lembrados como ferramentas eficientes de mobilidade social. Há outros caminhos, por exemplo, na saúde, na habitação?

A saúde é fundamental. Sobram evidências de que a saúde e o cuidado da grávida impactam na história dos filhos. Cecília Machado, por exemplo, que está no nosso Conselho, mostra, em um trabalho recente, que a interação entre transferências em dinheiro para famílias e o acompanhamento do pré-natal, quando ocorrido no primeiro trimestre de gestação, teve efeitos estatisticamente significantes sobre a saúde do bebê (por exemplo, efeito sobre o peso ao nascer). É muito importante para a política pública esse tipo de evidência, para que os programas sejam mais bem desenhados. Existe um espaço enorme para fazermos trabalhos nessa área. Mais do que isso. O trabalho com a grávida se dá não apenas sob a ótica estrita da saúde, mas do tratamento da parte socioemocional da mãe, da necessidade dela conversar com o filho, como tem trabalhado o Flavio Cunha, apoiando o PADIN (Programa de Apoio ao Desenvolvimento Infantil) do Ceará. Outra coisa que impacta na formação do jovem e do adulto é se ele, desde cedo, tiver disciplinas ligadas a relacionamento pessoal ou busca de vocabulário. Isso tem efeito para o resto da vida. Jovens naquele momento difícil, sob o risco do envolvimento com drogas, violência, sexo inseguro, podem ser inseridos em programas para desenvolvimento de capacidades socioemocionais. Existe uma linha promissora de programas que usam terapia cognitivo-comportamental para ajudar o adolescente a processar melhor decisões tomadas em situação de stress. São experiências bem avaliadas de programas com públicos-alvo que são adolescentes em situação de extrema vulnerabilidade e exposição à violência, como Becoming a Man, em Chicago; STYL, na Libéria, e o Glasswing, em El Salvador. Existem várias áreas para desenvolvermos, sobretudo com as prefeituras. A pesquisa deve dar suporte a melhores decisões em políticas públicas, que, por sua vez, devem ser desenhadas desde o início para admitir avaliações permanentes e se adaptar aos resultados dessas avaliações.

Comandar uma entidade como o imds tem algo a ver com otimismo? O senhor é otimista?

Tive momentos de muito desânimo com o país. Mas a vida me colocou certas questões e só me resta, estou convencido disso, lutar para torná-lo melhor, mais justo. Se conseguirmos avançar nisso eu terei realizado um sonho pessoal e contribuído para o país, eu e aqueles que estiverem comigo. Não é só o Instituto, mas também os gestores públicos e todos aqueles que compartilharem essa ideia.