Olá, *|NOME|* Um dos temas mais controversos no debate público e acadêmico das últimas décadas é o das ações afirmativas no ensino superior, implementadas por meio de bônus em provas de vestibular ou por reservas de vagas – as chamadas “cotas”. Destaca-se entre as dificuldades do tema a sua intrínseca complexidade normativa. Parece claro, nesse sentido, que existem muitas respostas possíveis à pergunta: “O que queremos atingir com ações afirmativas?” Uma das respostas enfatiza o papel de ações afirmativas enquanto políticas de acesso, que visam aumentar a admissão de grupos considerados como subrepresentados no corpo discente das universidades. No entanto, é possível considerar também seu papel potencial de aumentar a eficiência alocativa das oportunidades de desenvolvimento humano, aceitando alunos que, embora tenham tirado notas menores nos exames de admissão, teriam um retorno relativamente maior com o ensino superior. Há também a possibilidade de considerar ações afirmativas como instrumentos de redistribuição, que induziriam mudanças na renda futura agregada daqueles que entram e daqueles que deixam de entrar no ensino superior. Adicionalmente, há ainda a possibilidade de foco no longuíssimo prazo, o que nos levaria a julgar ações afirmativas pela sua capacidade de aumentar a mobilidade social intergeracional. O documento Ações Afirmativas no Ensino Superior: Revisão de Literatura, produzido pelo Imds por solicitação do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), pretende lançar luz sobre o tema, visitando criticamente a literatura científica que se debruça sobre os impactos causais de ações afirmativas no Brasil e em outras regiões do mundo. O documento se divide em seções que descrevem as melhores evidências sobre impactos de ações afirmativas no ensino superior, considerando a cadeia lógica de efeitos de políticas desse tipo, e apresenta a já substancial literatura sobre os efeitos da própria Lei de Cotas (Lei Nº 12.711/2012). Em primeiro lugar, são considerados os efeitos sobre o acesso a instituições de ensino superior. À luz da literatura, parece indiscutível que ações afirmativas tenham sido responsáveis, nos últimos anos, por mudanças substanciais no perfil socioeconômico e racial dos alunos do ensino superior, em particular nos cursos mais seletivos. Como essas políticas alteram as probabilidades de ingresso no ensino superior, também são consideradas pelo documento as evidências sobre margens potencialmente adversas de ajuste dos alunos a essas mudanças durante a escolarização básica, como a mudança estratégica para escolas públicas para satisfazer o critério de beneficiário. Em seguida, a atenção volta-se para os efeitos sobre trajetórias educacionais e, subsequentemente, no mercado de trabalho. É central para a literatura sobre o tema a hipótese de mismatch (incompatibilidade), segundo a qual políticas do tipo colocariam indivíduos em situações acadêmicas no ensino superior para as quais eles estariam mal preparados, levando-os a se formar com probabilidade menor e a uma trajetória pior no mercado de trabalho. No documento são descritos os principais resultados empíricos da literatura sobre essa hipótese, com ênfase na pesquisa sobre experiências de universidades brasileiras na década de 2000, antes da Lei de Cotas, e depois de sua implementação ao longo da década de 2010. A evidência existente sobre o tema fornece pouco suporte à existência de um mismatch sistemático nas universidades federais brasileiras após a implementação da Lei de Cotas, embora haja evidências que seriam consistentes com o fenômeno nos casos da Universidade Federal da Bahia e no caso da Universidade de Brasília, que instituíram programas de ação afirmativa bem antes da lei federal ser promulgada. De maneira geral, a literatura tende a ressaltar que as conclusões dependerão do contexto de implementação e do desenho da política. Uma questão relevante, e relativamente menos enfatizada pela literatura, é a de quais traços de desenho seriam mais relevantes para minimizar os potenciais efeitos do mismatch. Também é menos claro, em parte por dificuldades em analisar efeitos de longo prazo de políticas relativamente novas, quais são as consequências de ações afirmativas para a mobilidade intergeracional. Em paralelo aos esforços de elaboração do documento, foram inseridas na Plataforma Impacto descrições sobre os efeitos de ações afirmativas, coletando detalhes sobre o desenho e impactos, com foco nas margens descritas acima [veja aqui]. O Imds também realizou em novembro de 2022 um seminário sobre o tema, também como parte da parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento. Existem, contudo, limites no tipo de lição que pode ser extraída da comparação de avaliações de impacto. Uma alternativa que pode dar subsídios importantes para tomadores de decisões no desenho de um programa de ação afirmativa é o uso de modelos estruturais de equilíbrio geral computável, em que se simule e se compare os resultados de uma variedade de possíveis regras alternativas (principalmente público-alvo e regras de acesso às vagas). Quais seriam, por exemplo, as consequências de reduzir o critério de renda, que hoje é de 1,5 salários-mínimos per capita --condição na qual, entre 2012 e 2016, mais de 90% dos inscritos no ENEM se enquadravam? Pensando nessa e em outras questões relevantes para o aumento da efetividade da Lei Nº 12.711/2012 , o Imds conduzirá estudo de simulação baseado em um modelo de equilíbrio geral desenvolvido pelo pesquisador Luiz Brotherhood e coautores – e apresentado em artigo premiado pelo Prêmio Imds-BID-SBE –, que permitirá caracterizar os efeitos de diferentes parâmetros do desenho atual. Esperamos que esses esforços institucionais possam contribuir para reunir subsídios que permitam pensar sobre os impactos de ações afirmativas, fornecendo uma imagem mais completa para a sociedade civil e indicando caminhos frutíferos de pesquisa e de reflexão sobre o seu monitoramento. Até a próxima “Carta do Imds”! Paulo Tafner Diretor-presidente |