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As trilhas da mobilidade social

Publicado em 18/02/2021
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O investimento em educação é a aposta mais evidente, mas, no Brasil e no mundo, há projetos e resultados em diversas outras áreas

São muitos os fatores que oferecem a uma pessoa a oportunidade de progredir na vida, de conseguir viver em condições melhores do que a que seus pais viveram. Destaque nessa lista, a educação tem inegável impacto como motor de desenvolvimento pessoal. Mas não está sozinha. O leque de opções passa por áreas e iniciativas tão variadas que é difícil identificá-las. Há os óbvios e entre eles estão: as melhores condições de habitação, os programas de saúde básica, serviços de creche e até mesmo nutrição infantil. E deve haver muitos outros por aí, ainda não percebidos. A boa notícia é que essa busca já mobiliza instituições ao redor do mundo para estudar, através do melhor método científico, fatores e interações capazes de promover mobilidade social.

Os experimentos nesse campo das ciências sociais buscam entender o que fez de fato a diferença na vida das pessoas. Há conclusões interessantíssimas. É o caso do projeto realizado na segunda metade dos anos 1980, desenhado e implementado por Sally Grantham-McGregor, professora emérita na University College London, e que subsidiou a criação do Programa Reach Up (https://www.reachupandlearn.com/).

Trabalhando com crianças entre 9 e 24 meses de idade, em Kingston, na Jamaica, a intervenção Jamaica Supplementation and Stimulation Study ou Jamaica Study envolveu 213 participantes divididos em quatro grupos, todos formados por crianças com atraso no desenvolvimento físico – o que é usualmente correlacionado com má-nutrição. Um dos times recebeu estimulação psicossocial e o outro, nutrição suplementar. Um terceiro incluiu crianças às quais foram proporcionados os dois tratamentos. Ao último, o grupo de controle, não foi oferecida nenhuma intervenção. O estudo jamaicano também abordou um grupo de comparação, com crianças que não sofriam de atraso no desenvolvimento e viviam nas mesmas vizinhanças do grupo de tratamento. A atuação sobre o primeiro grupo (o da estimulação psicossocial) consistiu em visitas semanais de agentes comunitários de saúde e uma abordagem direta a seus pais, que eram encorajados e ensinados a interagir com a criança a partir de protocolo específico construído com o fim de desenvolver habilidades cognitivas e psicossociais. Ao longo de dois anos, esses profissionais ensinaram competências parentais.

Família em Kingston: capital jamaicana foi palco de estudo revelador sobre o impacto de estímulos psicossociais na primeira infância em indivíduos de baixa renda.

Duas décadas depois, o economista Paul Gertler (University of California Berkeley) comandou uma série de entrevistas com os indivíduos que participaram do projeto nos anos 80. Nesse reencontro, se verificou que as crianças de famílias visitadas por agentes comunitários de saúde no passado e submetidas a estimulação psicossocial tornaram-se adultos com ganhos de renda cerca de 25% maiores do que a média do grupo de controle, que participou do estudo sem receber nenhum tipo de tratamento – ganho que os equiparou ao grupo de comparação das crianças sem atraso no desenvolvimento físico no momento do experimento.

Na mesma avaliação, os submetidos à estimulação psicossocial na infância apresentaram melhor desempenho escolar e tiveram menor participação em crimes violentos. As conquistas obtidas por essas crianças foram superiores às dos integrantes do grupo que teve acesso apenas à nutrição suplementar. Descobertas assim são preciosas, principalmente quando servem de insumo para a produção de políticas públicas consistentes. São evidências científicas e, portanto, menos sujeitas a erros do que ações de governo baseadas simplesmente no senso comum ou apenas nas convicções pessoais dos mandatários.

No Brasil, o aprendizado trazido pelo programa jamaicano inspirou a criação do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Infantil – PADIN, desenvolvido no Ceará pelo governo estadual desde 2014. A implantação contou com processo rigoroso de planejamento, que incluiu um projeto-piloto em áreas extremamente pobres e aleatorização prévia à intervenção, cuja avaliação vem sendo liderada pelo economista Flávio Cunha, do Texas Policy Lab.

Notável entre os estudos mais inovadores no campo da mobilidade social, o Moving to Opportunity (MTO) é um programa de realocação habitacional financiado pelo Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano (HUD, na sigla em inglês), órgão do governo federal americano, em parceria com governos locais. Através da concessão de vouchers para aluguel, antecedida por intensas pesquisas preparatórias e aconselhamento dos inscritos, 4.600 famílias com crianças trocaram suas residências em áreas de intensa precariedade por vizinhanças com mais estrutura e condições econômicas. As famílias participantes do MTO foram recrutadas entre 1994 e 1998 em cinco cidades: Baltimore, Boston, Chicago, Los Angeles e Nova York.

Conjunto habitacional em Los Angeles: uma das cidades dos Estados Unidos incluídas no programa Moving to Opportunity.

Em 2002, e depois de 2008 a 2010, as famílias inscritas passaram por entrevistas para avaliação do programa. As análises, focadas nos efeitos do MTO sobre adultos e crianças, indicam diminuição nos casos de segregação racial. No universo das crianças que tinham menos de 13 anos quando suas famílias trocaram de endereço, os efeitos são positivos e palpáveis. Segundo artigo científico publicado na American Economic Review pelos pesquisadores Raj Chetty, Nathaniel Hendren e Lawrence F. Katz em 2015, as crianças transferidas para vizinhanças melhores tiveram melhor desempenho escolar, renda superior à de seus pais e vivem, elas mesmas, em vizinhanças melhores quando adultas. Entre os adultos, as entrevistas mais recentes (que cobrem um período mais amplo de atuação do MTO) apontam avanços sutis no estado de saúde geral, com recuo na incidência de depressão, obesidade mórbida e diabetes. A influência do Moving to Opportunity também se revelou praticamente nula na melhora da subsistência econômica dos adultos participantes do projeto. Um dado que certamente impõe a muitas cidades do Brasil, tomadas por favelas, indagações sobre os caminhos a seguir.

Duas experiências bem sucedidas fazendo uso de TCC foram os programas Becoming a Man (BAM), implementado pela primeira vez em Chicago, nos EUA, e os After-School Clubs, em El Salvador. O BAM apresentou resultados na redução de reincidência penal entre 28% e 35%, redução de crimes violentos de 45% a 50% e aumento de 12% a 19% na taxa de graduação no ensino médio. No caso do programa implementado em El Salvador, os resultados apontam para redução de registros de má conduta dos jovens, queda de 23% no absenteísmo escolar e aumento das notas, com efeito puxado pelas mudanças observadas nos estudantes mais violentos no início da intervenção.

Já o Summer Youth Employment Program (SYEP), implementado em Boston e Nova York, se mostrou bem sucedido em aumentar a probabilidade de conclusão do ensino médio (6,1 pontos percentuais), reduzir o abandono (2,6 pontos percentuais) e diminuir o absenteísmo escolar crônico (27%), resultados esses correlacionados com: aumento nas aspirações de ir para a faculdade, ganho de hábitos de trabalho e melhora nas habilidades sociais. No entanto, tais programas não parecem ter efeito em empregabilidade.

Políticas públicas de mobilidade social passam pela educação, como nunca é demais repetir. Também podem tomar os caminhos do estímulo psicossocial, adotado na Jamaica, ou mesmo da mudança habitacional oferecida no projeto do governo americano Moving to Opportunity. Ou ainda trabalhar as habilidades não cognitivas de jovens, como o Becoming a Man, os After-School Clubs ou os Summer Jobs. Há outros rumos possíveis, mas o foco é um só. “A desigualdade de capital humano decorre, em grande parte, da desigualdade do investimento em capital humano”, resumiu de forma certeira Flávio Cunha, professor de Economia da Rice University, em palestra na Fundação Getúlio Vargas. É fundamental para o desenvolvimento assegurar aos indivíduos dos estratos de menor renda a chance de migrar de posição na sociedade – e essa chance, em geral, é negada pela ausência ou má execução de políticas públicas.

Exemplos de iniciativas baseadas no método científico, amparadas em pesquisa, voltadas para o estudo e a promoção da mobilidade social, existem mundo afora. É esta a experiência que o Imds se propõe a difundir no Brasil – o uso de evidências em todo o ciclo da política pública. Realizar o diagnóstico do problema – o que está travando a mobilidade e como; desenhar a melhor intervenção para cada contexto (mesmo que inspirada em outras experiências, como no caso do PADIN); colocar em prática, analisando os possíveis riscos e ameaças e planejando como lidar com eles; programando o monitoramento de indicadores que permitam acompanhar a evolução dos resultados e gerando condições para uma avaliação de impacto que permita afirmar se a intervenção é eficaz; e, por fim, realizar uma análise de custos, visando responder se o programa produz resultados que compensem os custos. Tudo isso num compasso repetido, criando uma cultura virtuosa de usar o método científico para fazer políticas públicas eficazes e efetivas que promovam igualdade de oportunidades.

O investimento em educação é a aposta mais evidente, mas, no Brasil e no mundo, há projetos e resultados em diversas outras áreas